Manuel de Freitas
Pressa de viver |
[para o Zé, que nunca lerá este poema] Negro, trinta e dois anos, dealer. Pensava que a guerra no Kosovo tinha por motivo único a resistência e conversão em euros - e talvez nisso tivesse, afinal, uma obscura razão. Noutra noite, vi-me obrigado a explicar-lhe o melhor que pude o que era o FMI - que ele decerto interpretou como um partido de 'tugas vagamente hermético. De facto, a outra a sua economia: contos de xamon, pastilhas, piropos de esquina, os dois ou três filhos de que apenas bêbedo se lembra. Mas não é bem disso que eu hoje queria falar. Passamos a noite lado a lado, no mesmo balcão. Demorei algum tempo a cumprimentá-lo Pediu logo grandes, imensas desculpas por não me ter visto. Que era a pressa de viver, garantiu-me, aquilo que nos torna tão cegos e as evidências, ao rosto desse próximo que se por bíblico acaso amamos - Quando o ódio, mais discreto, de nome e sentido as ruas. Fingi acreditar, procurei não desmentir o seu olhar verde vindo de outro qualquer planeta. Seria difícil explicar-lhe aquela hora a compulsiva demora de morrer que me faz sair de casa e procurar, entre ninguém, a pior das companhias: eu. Acabou por levar para a rua uma imperial de plástico, lembrado talvez dos possíveis clientes a quem ajudar e a esquecer um emprego, o desamor, o calor sinistro deste Verão. Na verdade, pouco mais haveria a dizer sobre este corpo brando que há vários anos se encosta às minhas noites. Serve-me de escudo para os bárbaros mais novos - e protege-se, o melhor que pode, da rusga sem objeto a que chamamos vida. [SIC] poesia inédita portuguesa Assírio & Alvim, via Poesia e Prosa |
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